Este post é a adaptação de um trabalho apresentado por mim no núcleo Habemus Ad Dominum da British Martinist Order (Rio de Janeiro/RJ) em 02/07/2017.
O rev. William Law foi um clérigo anglicano que vive entre 1686 e 1761,
é considerado por muitos um dos principais discípulos do místico luterano Jacob
Boehme e o responsável por sua tradução/interpretação em língua inglesa. Law
tinha uma carreira promissora, porém sua lealdade com a casa real dos Stuarts
(antiga dinastia católica da Inglaterra) o impediu de prosseguir.
Vale termos em mente os
antecedentes de Law. O anglicanismo tenta se firmar como um meio-termo entre o
catolicismo (especialmente o romano) e o protestantismo, abrangendo diversas
correntes de pensamento que vão mais para um caminho ou mais para outro. Law
como era um non-juror, leal a dinastia católica dos Stuarts, mas ao mesmo tempo
era discípulo do luterano Boehme e ainda influenciou em alguma medida Louis
Claude de Saint-Martin. Veja que temos duas tradições místicas muito fortes
influenciando aí: o catolicismo medieval foi um fértil celeiro de místicos, o
luteranismo por sua vez deu origem a várias tradições místicas (Lutero mesmo
tendeu para o misticismo em vários momentos): rosacrucianismo (conforme podemos
observar nos próprios manifestos), pietismo e a renovação do moravianismo (que
não deixa de ser petista).
Talvez o ponto crucial
na teologia mística de Law seja conciliar a ortodoxia doutrinária com a mística
cristã. Law preservou doutrinas como a da Depravação Total da Humanidade, Jesus
Cristo como única via até o pai e a Salvação pela graça, através da Fé. Porém,
tais doutrinas que possam constantemente ser um desafio a um cristianismo
tolerante, que aceite e reconheça que pessoas que não se dizem cristãs possam
ser salvas, porém o rev. William conciliou as duas coisas magistralmente sem
qualquer artifício ardiloso, mas apenas com as escrituras e a iluminação
divina.
Assim como entender
William Law pode ajudar a entender seu mestre Jacob Boehme, entender os rev.
John Wesley e Charles Wesley pode nos ajudar a entender o pensamento de William
Law.
O metodismo, movimento
protagonizado por discípulos de Law, tem uma teologia arminiana (portanto
rejeitando o fatalismo/predestinacionismo calvinista) e suas ênfases principais
(que estão presentes em Law) estavam na santificação, que (diferente de Law,
Boehme e dos petistas) os metodistas tendiam a entender a santificação como
plena enquanto Law/Boehme/Zinzendorf encaravam ela como um processo (nas
palavras de Lutero, o cristão era Simul
Justus et Pecattor), essa santificação ocorria pela ação do Espírito Santo
em nós que deveríamos aceitar (melhor dizendo: Não impedir a ação de Deus em
nós).
Assim, Law acreditava
que a pessoa era salva por aceitar Jesus e o Espírito Santo agindo em si, porém
isso não necessitava de uma adesão consciente, já que se o ser humano é caído
por natureza e todo o bem provém de Deus, quem pratica o bem está deixando Deus
agir em si mesmo sem ter as melhores concepções doutrinárias sobre. Nas
palavras de Law: "É por isso que, na maior verdade e na mais alta
realidade, qualquer comoção da alma, qualquer inclinação do coração a Deus e à
bondade, há de ser atribuída de maneira justa e necessária ao Espírito Santo ou
à Graça de Deus."
Tal como Boehme, Law
reconhecia duas qualidades agindo em nós: A do Espírito Santo (céu interior) e
a qualidade colérica (inferno interior, voz do tentador). Portanto, nascer
novamente é deixar Deus agir em nós, essa é a santificação que devemos buscar e
essa é a vida nova de que precisamos. Quando Nicodemus perguntou a Jesus se
nascer novamente era voltar ao ventre da sua mãe, Jesus respondeu que era
nascer da água e do Espírito. "Se o desejo de Deus desperta
verdadeiramente na alma humana, a vida divina entra nele, e o novo nascimento
de Cristo toma forma em quem nunca ouviu falar o nome dele".
Ter em mente a necessidade do nascer novamente enquanto
reforma total do nosso íntimo na busca da santificação, afasta de nós a
controvérsia acerca da reencarnação. Já que ela se torna irrelevante dentro
desse contexto, pois, evoluir não seria uma questão de nascer novamente em
termos físicos infinitas vezes e sim que paremos de impedir a ação de Deus em
nós e nesse caso a existência de apenas uma encarnação ou de milhares se torna
um fator secundário/irrelevante. Mais uma vez, o entendimento de Law é
essencial quando falamos de diálogos inter-religiosos e ecumenismo, já que nos
afasta das controvérsias pouco relevantes e nos foca no essencial que está para
muito além dos tomos de teologia e depende da religião do coração.
Falando em religião do coração, outro aspecto importante
a ser lembrado é que Law não era anti-intelectual, mas considerava que a razão
não era suficiente para chegar até Deus: “Todo o bem e todo o mal vem dele;
somente seu coração tem a chave da vida e da morte; faz tudo quanto quer. A
razão mostrou ser um brinquedo impotente, ocioso, quando comparado com a força
real do coração, que é o poder real, que tem todo o governo da vida em suas
mãos”.
Na
realidade, sua teologia nos mostra que não podemos chegar até Deus com nossos
esforços (salvação pela graça), é Deus que vem até nós e tudo o que podemos
fazer é tentar sentir a Sua atuação em nós. Nas palavras de Law, isso nos ajuda
a evitar o farisaísmo que seria a mais alta linhagem do espírito do mundo e
justamente por isso Cristo vai dizer que os publicanos e as prostitutas
entrariam no Reino dos Céus antes dos escribas, fariseus e hipócritas que
transformaram a piedade em negócio e acabam por servir a outro deus que não o
Deus soberano:
"Buscamos
nossa própria virtude, nossa própria piedade, nossa própria bondade, e, por
isso, vivemos em nossa própria pobreza e debilidade: hoje satisfeitos e
consolados com a aparente força e firmeza de nosso próprio temperamento
piedoso, e imaginando que somos algo; amanhã caídos em nossa própria lama,
ficamos abatidos e desanimados, porém não humilhados; queixamo-nos, porém é
somente a dor da soberba, ao comprovar que nossa perfeição não era tal como a havíamos
imaginado vã e vaidosamente. E assim haverá de ser, até que nossa mente haja
mudado de tal modo que aceitemos nossa completa incapacidade para possuir
qualquer bondade nossa, de ter vida própria.”
A
soberba nos afasta de Deus e por isso que é dito que Deus rejeita o soberbo e
dá a sua graça ao humilde. Ao nos enchermos de nós mesmos, nos sentirmos mais
especiais que os outros, estamos impedindo que Deus atue em nós (acabamos de
uma forma ou de outra considerando Deus “desnecessário” perante nossos méritos/virtudes/capacidades
e santidade) enquanto que o humilde, ao reconhecer a sua própria impotência,
acaba deixando Deus agir sem maiores problemas. Podemos pensar como se houvesse
um técnico em nossa casa, o serviço fluirá bem se deixarmos ele trabalhar, mas
tenderá a dar errado se ficarmos impedindo o seu trabalho para que nós (que
nada sabemos ou sabemos muito pouco) imponhamos como e quando ele deve agir.
“Pois,
já que nada é nem pode ser bom em nós, senão a vida divina manifestada em nós,
como poderemos conseguir isto senão unicamente de Deus? Felizmente, uma vez que
sejamos levados a esta convicção, teremos nos libertado da ideia de sermos
nossos próprios construtores"
Nesta religião do coração, a oração é essencial, porém a
Oração para Law não se resume na recitação de preces, súplicas e rezas. Para
Law, a oração é um Estado de Oração, é um entregar-se em Deus e esvaziar-se de
si mesmo. Aliás, a única oração com valor seria aquela feita em Deus, guiada
pelo Espírito Santo, pois a oração sem a atuação de Deus apresenta dois
problemas: A) Seria apenas um belo discurso, ótimo para a retórica e pouco ou
nada eficaz para a vida espiritual. B) Quando não oramos em Deus e para Deus,
estamos orando para algum ídolo (ídolo aqui pode ser um sentimento, uma riqueza,
uma ideologia política ou religiosa, qualquer coisa que coloquemos como a
ênfase de nossa vida “Porque, onde estiver o teu tesouro, aí também estará o
teu coração” cf. Mateus 6:21).
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Rev. William Law |
A perseverança na oração é importante, porém temos que
ter cuidado para não cairmos na repetição mecânica de fórmulas ou mesmo na
simples oratória espontânea, a oração deve ser um ato transformador e por isso
que o apóstolo Paulo nos manda “Orar sem cessar” (I Tessalonicenses 5:17). Se
entendermos orar como uma atividade oral, além de excluirmos pessoas
deficientes dela (o que dizer então dos animais, já que a Bíblia diz que todas
as criaturas louvam ao Senhor?), seria impossível para nós orarmos sem cessar e
as palavras do apóstolo seriam vão exagero. Porém, se entendermos a oração como
um estado de espírito no qual nos entregamos a Deus (e aí as preces,
meditações, repetições nos auxiliam a chegarmos nesse estágio) aí entenderemos
que será possível orar sem cessar e a oração será deixar a porta do céu aberta
em nós e derrubar o inferno interior.
Em seu livro, O Espírito da Oração, Law deixa uma oração
sua por escrito que vale a penas analisarmos para entendermos o seu pensamento:
Oh Pai Celestial,
infinita e insondável profundidade de amor que não se esgota nem cessa jamais,
salva-me de mim mesmo, dos movimentos e impulsos desordenados de minha natureza
caída, corrompida desde tempos atrás, e faz que meus olhos vejam, que meu coração
e meu espírito encontrem e sintam Tua salvação em Jesus Cristo.
Oh Deus, que me fizeste
para Ti para mostrar Tua bondade em mim, humildemente Te suplico, manifestes
dentro de mim o poder doador da vida de Tua sagrada natureza; ajuda-me a ter
uma fé tão viva q verdadeira em ti, uma fome e uma sede do nascimento, a vida e
o espírito do sagrado Jesus em minha alma tão forte, que tudo quanto há em mim
se separe de qualquer pensamento interior ou ação exterior que não sejas Tu,
Teu santo Jesus, e não suponha um funcionamento celestial em minha alma. Amém.
Law
reconhece Deus com o mais profundo, infinito e incompreensível amor e seu
principal pedido é de que Ele nos salve de nós mesmos. Esse é um ponto
importante da teologia cristã, quem salva é Deus (através de Cristo) e nós
mesmos é que somos aqueles que podemos nos derrubar. Mais do que qualquer ser
externo, a nossa maior ameaça é interna. É o dragão que habita em nós, é o
pecado que nos guia em nossos desejos e nos faz buscarmos apenas a nossa
própria satisfação egoísta ao invés da vida amorosa de comunhão com Deus e com
nosso próximo.
Os
males de nossa sociedade são todos causados pela falta de regeneração humana e
isso se dá justamente pelo interior das pessoas, por se entregarem em sua
natureza caída com todos os seus impulsos e movimentos voltados para o desamor.
Por isso mesmo, Law ora pedindo a Deus que o liberte de qualquer pensamento
interior e ação exterior que não se relacionem com a vida celestial. Para
tanto, é necessário que tenhamos a sede do novo nascimento para que a nossa
natureza decaída seja substituída pela natureza divina de Cristo. Afinal, a
nossa meta deve ser aquela das palavras de São Paulo: “Assim, já não sou eu quem
vive, mas Cristo vive em mim” (Gálatas 2:20).
A
questão da cura física não é um tema de grande importância no trabalho de Law,
sua ênfase está na cura interior, porém podemos depreender de seus escritos uma
postura diante das enfermidades e no aguardo da cura: a confiança em Deus. Se a
oração é o esvaziamento em Deus, então podemos pensar no uso da oração para a
cura como o se entregar completamente a Deus em termos de saúde ou doença.
Entendo que isso nos faz deixar a cura nas mãos de Deus (evidentemente sem
deixarmos de fazer a nossa parte), mas tentando não nos desesperarmos por isso
e nos mantermos focados em Deus sem nos abalarmos em nosso objetivo por conta
do revés da vida e tentarmos entender o motivo e o que podemos aprender daquela
situação.
Além
do mais, as tentações quando não surtem efeito se vão sozinhas, tal como o
diabo desistiu de tentar Jesus no deserto ao ver que seria infrutífero e tal
como Jó acabou tendo tudo reestabelecido em quantidade muito maior ao fim das
provações. Por isso, temos que tentar ver também se o objetivo da doença não é
nos desviar do caminho pelo desespero/aflição. Ao invés de nos perdermos nos
momentos mais escuros da nossa vida, inclusive de doença e dor, devemos tentar
transformar esses momentos em aproximação de Deus e eles nos farão bem ao invés
de mal.
“E,
portanto, a alma piedosa que só olha a Deus, que não pede nada além de ser só
sua, não para de fazer seu progresso. Luz e escuridão igualmente a ajudam: na
luz ela olha para Deus, na escuridão se apoia em Deus. E assim ambas lhe fazem
o mesmo bem”.
Todas as citações foram retiradas do livro "O Espírito de Oração" de William Law:
http://salcultural.com.br/oracao.htm