A mística como chave para a resolução dos
conflitos sobre gênero na Teologia.
Revdo. Morôni Azevedo de Vasconcellos (Igreja Episcopal Anglicana
do Brasil)
Quando lemos o relato da criação no Gênesis, é importante
fazermos algumas considerações sobre Adão. Primeiro que para o
próprio judeu, Adão e Eva não eram seres individuais e sim a
representação da coletividade humana (a palavra Adão em hebraico
quer dizer simplesmente Homem e não um nome de alguém).
Independente disso, os antigos judeus já falavam que o primeiro Adão
foi criado andrógeno, ou seja homem e mulher (Gênesis 1:27), por
isso que Deus criou a humanidade a sua imagem e semelhança, pois ele
não é nem homem e nem mulher.
“Ele estava no paraíso e o fruto paradisíaco crescia
nele. Ele era um só ser humano, e não dois. Era o homem e também a
mulher, e devia gerar da partir de si um reino angélico. E isso era
possível, pois ele não tinha uma carne e um sangue tais quais
depois da queda, quando teve vergonha diante da Majestade de Deus.
Ele tinha uma carne e um sangue supracelestes! Suas essências eram
santas: sem que seu corpo rasgasse, ele podia gerar uma imagem tal
qual ele era. Afinal, ele era uma virgem sem forma feminina, conforme
a forma da [virgem] eterna] (BOEHME, 2017, p. 152-153).
Por vezes, dada a nossa limitação da linguagem tendemos a falar de
Deus com termos masculinos como Pai, porém Jesus mesmo usou termos
femininos para se referir a sua divindade (vide a maternidade e não
a paternidade de Deus presente na metáfora da galinha em Mateus
23:37/Lucas 13:34), porém ele não raro é associado com a Sabedoria
divina, que segundo o luterano Jacob Boehme (2017): “... a imagem
da Virgem eterna existia na substancialidade divina e eterna – em
verdade sem ser; mas no homem Cristo ela veio em ser.” (p. 140);
Considera bem isto: o Verbo de Deus, a palavra do Pai, veio sobre a
cruz em Maria – entende: na Maria terrestre. Ora, onde a Palavra
está, lá está a Virgem eterna, pois a Palavras está na Sabedoria
e a Virgem da eternidade também está na Sabedoria, e uma não está
sem a outra, pois, do contrário, a eternidade seria dividida.” (p.
140-141).
A Shekhinah, a presença divina (feminina) é geralmente associada
ao Espírito Santo (MORAES, 1995). Mas, como diz uma história
taoísta: O dedo que aponta a lua é importante para apontar a lua,
mas não é a própria lua.
No comentário escrito pelo renomado rabino Arieh Kaplan, em sua
edição do Sêfer Ietsirá, inclusive coloca que o nome Jah
(contração de Javé ou YHWH) possui em si o He (feminino) do
entendimento e o Yod (masculino) da sabedoria. Ainda conta uma
passagem, que segundo ele foi usada até por rabinos posteriores para
justificar que a inseminação artificial não se tratava de incesto
ou adultério, em que Jeremias teria tido relações homossexuais em
uma banheira e que posteriormente sua filha teria se banhado na
banheira e engravidado do sêmen que ele ejaculou por lá, dando
origem a Ben Sirá. Filho de Jeremias com sua filha, porém sem
qualquer relação sexual entre ambos.
Aliás, falando ainda em Cabala, a Árvore da Vida que representa
essa manifestação divina, os vários planos associados na chamada
“Escada de Jacó” e o próprio adão perfeito apresenta três
colunas, a masculina, a feminina e a “neutra”. A própria “Escada
de Jacó”, elemento central na Cabala Toledana, é a sobreposição
de 4 árvores da vida (1 árvore em cada plano: Azilut, Beriah,
Yezirah, Assiyah) sendo que, conforme Halevi (2006), apenas nos
planos mais baixos que Adão começa a se dividir, sendo em Yezirah o
início dessa divisão e só em Assiyah (onde segundo o autor nós
somos a encarnação de Adão) é que a a divisão por gênero. O
Adão dos níveis mais puros (planos angélicos) continua sendo
adrógeno, não é por isso que dizemos que uma discussão inútil é
discutir o sexo dos anjos? De fato eles não existem e isso demonstra
um estado de pureza não-binária entre os anjos e que Cristo promete
ser o destino final da humanidade remida (Mateus 22:30).
Este primeiro Adão (Adam Kadmon), que no projeto de Deus era um só
e foi criado inicialmente como um só, é divido em dois: Adão e Eva
(FRANKIEL, 2009). A prova de que se tratava de um único ser, como
alerta Araújo e Oliveira (2013), é que o homem recebe o mandamento
em Gênesis 2:17 e depois é que a mulher é separada dele (Gênesis
2:21), porém, logo em seguida chega a serpente para enganar Eva e
ela já sabia dos mandamentos divinos, demonstrando que ela era um só
ser com o Adão anterior e portanto havia recebido nele o mandamento
divino.
Vemos a humanidade começando a se partir, a se dividir e vivendo em
sua incompletude (pra Boehme, a queda começa aí e não apenas no
fruto proibido). Veja que quando entendemos assim, a ideia de
superioridade de um sexo sobre o outro se mostra absurda, já que
ambos são metades complementares. Eva é parte de um primeiro Adão
(Kadmon significa primeiro, original) ao se separar surge um outro
Adão (esse sim masculino) e Eva (feminino), até a separação ser
na costela representa igualdade (se fosse superioridade seria na
cabeça e inferioridade seria nos pés).
Essa não é a única separação que é possível vermos na
história de Adão e Eva, o único se torna dois que se tornam mais
(os descendentes) e assim a humanidade vai se fragmentando cada vez
mais em mais e mais diferenças e grupos, muitas vezes se enfrentando
como Caim e Abel. Todas as identidades (raciais, culturais, de
gênero, etc) vem dessa divisão adâmica. A humanidade, antes unida,
um vaso na mão do oleiro se parte com a queda em diversos cacos
pequenos.
Como cristãos, nossa ideia é nos tornarmos novamente um só corpo
e um só espírito, como partes desse novo Adão (Cristo). Em Cristo
não há divisões, não há acepções de pessoas, não a
desigualdades, pois “Não há judeu nem grego, escravo nem livre,
homem nem mulher; pois todos são um em Cristo Jesus.” (Gálatas
3:28).
O próprio casamento, nesse contexto, é visto como o anseio da
humanidade de se reunificar, tornar-se novamente uma só. O
interessante é que outros povos tinham mitos sobre um ser andrógeno
original, que partiu-se em 2 (homem e mulher) e que os casamentos até
hoje seriam a tentativa de se reencontrar a metade perdida (aliás,
daí surge o conceito de Alma Gêmea). Os gregos diziam que os seres
andrógenos separados davam origem aos casais heterosexuais, os seres
não-binários/andrógenos, agora partidos em dois, davam origem aos
casais homossexuais. O fato de ser tão disseminada a ideia de uma
humanidade una que se parte, dando origem as diferenças de gênero e
o casamento como a reconstrução da unidade perdida, nos revela que
tem uma verdade muito profunda e que de certa forma Deus deixou na
mente de toda a humanidade.
Como conciliar essa sacralidade da união sexual-afetiva do
casamento com a ideia já citada anteriormente de Mateus 22:30 de que
a perfeição não-binária dos anjos é também
assexual/arromântica? Basta lembrar que em Mateus 22:30, Jesus está
falando do céu onde unidade já foi reestabelecida, o casamento aqui
é uma tentativa (ou parte do caminho) de reestabelecer essa unidade
e portanto devemos fugir das ideias equivocadas que demonizam o corpo
e os relacionamentos, pois o corpo também é criação de Deus e o
próprio Deus se fez carne para nossa salvação. Não é atoa que as
escrituras possuem um livro de caráter sexual-afetivo (cântico dos
cânticos), místicos de várias religiões usaram o sexo e a união
amorosa como símbolos da união mística com a divindade e a própria
redenção cristã usa a metáfora sexual-afetiva do casamento (a
Igreja é vista como a esposa de Cristo), aliás é nesse casamento
da Igreja que a humanidade se reunifica no novo Adão (Jesus) que
novamente rompe com as divisões de gênero (e todas as outras
divisões).
Resgatar toda essa diversidade da mística judaico-cristã (cabala,
pietismo, rosacrucianismo, alquimia espiritual, etc) não só irá
enriquecer nossa visão teológica, mas fornecerá armas eficazes,
sustentadas na tradição cristã e nas escrituras contra o
fundamentalismo anti-bíblico que nos ataca cada dias mais. Lembrando
que estas concepções estão presentes desde a origem de nossa fé*
e reaparecem em diversos movimentos (como os citados) ao longo da
história da Igreja (da antiga Israel até a Nova Israel), portanto
longe de um modismo heterodoxo, é recuperar o próprio sentido
original das escrituras e das nossas crenças. Muitas dessas ideias
tem sido absorvidas por outros grupos (esotéricos, ocultistas e
etc), pois a igreja cristã tem esquecido deles e como nos é
lembrado pelas escrituras: “Digo-vos que, se estes se calarem, as
próprias pedras clamarão.” (Lucas 19:40).
* Swedenborg (2008) ainda falará que 4 estilos da escritura, sendo o
segundo o sentido histórico, o terceiro profético e o usado pelos
salmos de Davi (que fica entre os dois anteriores e que trata da
pessoa interior). O autor ainda atribui ao desconhecimento do sentido
espiritual a falta de compreensão sobre o Apocalipse e outros textos
das escrituras. Sobre o primeiro, o espiritual ele diz nas páginas
69 e 70:
Em geral, no Verbo, há quatro estilos diferentes. O
primeiro era empregado na Igreja mais antiga. Sua maneira de se
expressar era tal que, quando mencionavam coisas terrenas e mundanas,
pensavam nas coisas representativas, mas as combinavam numa espécie
de séries históricas para lhes atribuir mais interesse e animação.
[…] Estas coisas representativas em Davi se chamam “enigmas da
antiguidade” (Sl 78.2). Moisés possuia os enigmas sobre a criação,
o jardim do Éden etc., até o tempo de Abraão, descendentes da
Igreja mais antiga.
Referências:
ARAÚJO,
Leonardo Oliveira de; OLIVEIRA, Marlanfe Tavares. Cabala
Cristã.
1 ed. Lisboa:
Chiado Editora, 2013. 109 p.
BOEHME,
Jacob. A
Grande Revelação do Mistério Divino.
3 ed. São
Paulo:
Polar, 2007. 172 p.
BOEHME,
Jacob. A
Vida Tripla Do Ser Humano.
1 ed. São
Paulo:
Polar, 2017. 376 p.
FRANKIEL,
Tamar. Cabala:
Uma Breve introdução para cristãos.
1 ed. São
Paulo:
Pensamento, 2009. 240 p.
HALEVI,
Z´ev ben Shimon. Adam
and the Kabbalistic Trees.
revised ed. Londres:
Kabbalah Society, 2006. 297 p.
KAPLAN,
Arieh. Sêfer
Ietsirá.
3 ed. São
Paulo:
Sêfer, 2015. 381 p.
LEVI,
Eliphas. As
Origens da Cabala.
1 ed. São
Paulo:
Pensamento, 19**. 137 p.
MORAES,
Regina. A
Cabala Cristã.
1 ed. Rio
de Janeiro:
Record, 1995. 249 p.
SWEDENBORG,
Emanuel. Arcana
Coelestia e Apocalispsis Revelata.
1 ed. São
Paulo:
Hedra, 208. 172 p.
Este trabalho foi apresentado no dia 26/10/19 no Seminário Gênero, Sexualidade e Fé realizado na Igreja da Comunidade Metropolitana no Rio de Janeiro.
Texto apresentado: https://drive.google.com/open?id=1IauKcAlEnwZfz58HJnrbW0KA3xLorFiX
Slides: https://drive.google.com/open?id=1xlgXOiRg1mK0nfMemrggNqJYszUbwJvP