domingo, 17 de maio de 2020

Incenso em varetas: uma alternativa litúrgica possível?

“Que minha oração suba até vós como a fumaça do incenso” (Salmo 140:2)
Queimar elementos de origem vegetal (folhas, madeiras, resinas, etc) é uma tradição presente na história dos mais diversos povos tanto com fins terapêuticos quanto com fins religiosos. Seja o Palo Santo dos indígenas, as varetas da Índia e extremo oriente, a “defumação” afrobrasileira, ou mesmo os gregos/romanos e tantos outros povos. O povo de Deus, desde os tempos bíblicos, também tem sempre utilizado o incenso.
No tabernáculo que Deus instruiu Moisés a montar, Deus ordenou inclusive que haveria um altar dedicado a queimar o incenso diariamente: “Arão queimará incenso aromático sobre o altar todas as manhãs, quando vier cuidar das lâmpadas, e também quando acendê-las ao entardecer. Será queimado incenso continuamente perante o Senhor, pelas suas gerações.” (Êxodo 30:7-8).
O uso do incenso se sustentar como símbolo (a fumaça se eleva aos céus e portanto “carregam” as orações que também sobem aos céus), como memória de um dos presentes que Jesus ganhou (Ouro, Incenso e Mirra) dos magos do oriente, bem como o aspecto de ambientação/terapêutico (o uso de certas fragrâncias pode favorecer o relaxamento e o ambiente contemplativo de oração), sendo também a forma de nos conectarmos com Deus e nos focarmos no culto através do olfato, tal como usamos o paladar na Santa Comunhão, a audição para os hinos/escrituras/sermão, a visão para os ícones/gestos/cores litúrgicas, o tato é usado tanto no abraço da paz quanto nas orações com contas (rosários/terços).
Tradicionalmente, a igreja cristã tem usado o chamado incenso litúrgico, “grãos” de resina que são lançados sobre carvão em brasas dentro do turíbulo. Porém, essa é uma opção com custo mais elevado e que provoca muita fumaça (sendo pouco adequada para locais menores e/ou com pouca ventilação). Nesse aspecto, muitas pessoas se perguntam sobre a possibilidade de usar o incenso em varetas (padrão indiano) tão comuns em lojas de artigos religiosos, de produtos esotéricos e até em farmácias ou lojas de produtos naturais. Geralmente isso causaria horror em muitos liturgistas, porém, vou apresentar uma opinião litúrgica divergente.
No meu entender nada impede o uso do incenso em varetas na liturgia da igreja, ele é bem mais prático, econômico e adequado para o uso em pequenos espaços. Ele cumpre a função de queimar exalando a fumaça que sobe aos céus, o aroma que induz a contemplação, o foco do olfato no culto divino e ainda permite a escolha de alguns aromas específicos para reforçar o simbolismo (como o incenso com mirra) ou algum aroma mais adequado para acalmar ou focar a mente. “O perfume e o incenso alegram o coração.” (Provérbios 27:9).
No meu entender, a única razão para se negar o uso de outras formas de incenso é uma tentativa de sacralizar determinados objetos e formas culturais em detrimento de outras, o que nos levaria a perigosamente tender a uma visão do culto cristão muito engessada, “eurocêntrica” (já que se prende apenas a forma que mesmo não sendo originalmente européia acabou se firmando nela e expandindo por meio dela), quiça podendo levar a algumas pessoas do povo a beirarem a idolatria de certos objetos (como se o culto fosse menos aceitável a Deus e edificante para o povo por se usar um elemento cultural em detrimento do outro, tal como muitas vezes é feito ao se criticar o uso de músicas contemporâneas no culto).
Devemos lembrar que para o culto cristão devemos sempre pensar em primeiro lugar: Isso fere as Escrituras e “a fé uma vez confiada aos santos” (Judas 1:3)? Se não fere, já não se pode dizer que não seja possível o seu uso. Quanto a utilidade, podemos sempre pensar se de alguma forma pode contribuir para a edificação do povo de Deus. Lembrando que, algumas formas estabelecidas no passado com fins edificantes e agradáveis a Deus podem não mais se adequar para o uso em certas comunidades e não há problema algum em mudar as mesmas desde que se mantenha fiel ao que confessamos doutrinariamente. Como dito pelo 34º artigo dos históricos 39 artigos da religião publicados por nossa igreja durante a reforma: “Não é necessário que as tradições e Cerimônias sejam em toda parte as mesmas, ou totalmente semelhantes; porque em todos os tempos tem sido diversas, e podem ser alteradas segundo as diversidades dos países, tempo e costumes dos homens, contanto que nada se estabeleça contrário à Palavra de Deus.”
O uso das varetas de incenso pode servir inclusive a um propósito didático pois, apesar de não ser obrigatório o uso do incenso, algumas comunidades não estão acostumadas com o uso do incenso na liturgia e o uso de varetas (mais discretas e com menos fumaça que possa incomodar alguém), pode servir para ir acostumando aquela comunidade a um uso edificante da igreja sem ferir suas próprias tradições e hábitos.
Há de se ressalvar porém que nenhum uso que deveria ser edificante deve servir de motivo de discórdia, portanto, se não devemos nos prender a sacralização de elementos culturais, também não devemos transformar isso em contenda. Na liturgia, os elementos novos ou a remodelação de elementos antigos devem sempre ser feitos com a anuência do bispo da respectiva diocese, em comum acordo com o clero da comunidade e ouvindo o povo daquela mesma. Se seria ruim fechar as portas de uma boa oportunidade, seria pior ainda transformar ela em um cavalo de batalha desnecessário.
A paz, o amor e a concórdia do espírito de adoração são os elementos mais essenciais no culto cristão. Temos hoje pelo menos duas comunidades em nossa Diocese usando varetas e podemos estar atentos ao mover do Espírito para novas possibilidades na liturgia, como manter a tradição de forma dinâmica, de forma que ela se torne útil e relevante e não meramente algo engessado e sem jogar fora a criança com a água do batismo.
Este texto visa apenas proporcionar a reflexão nas comunidades locais sobre como usar a tradição cristã dentro de seu contexto local, inclusive para se chegar as conclusões de que o mais adequado é não alterar a mesma em nada. Assim como em algumas comunidades e/ou ocasiões será mais interessante utilizar músicas contemporâneas e em outras será mais adequado usar os hinos tradicionais. Porém, em todos os casos continuamos unidos entre nós, vivenciando a unidade na diversidade, no amor de Deus, pela Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo e no poder do Espírito Santo.

Revdo. Morôni Azevedo de Vasconcellos
Rio de Janeiro, 12 de Maio de 2020.

sábado, 9 de maio de 2020

Profetas não são desejados, são necessários.

O nosso mundo tem um costume curioso, somos apaixonados pelo discurso de mudança mas, é a coisa que mais detestamos. Entre o povo de Deus não é diferente e isso é facilmente analisado quando lemos as escrituras. Seja na Bíblia ou na história da igreja, aliás é por isso que o lema Ecclesia Reformata et Semper Reformanda Est ao falar da necessidade da igreja reformada estar sempre se reformando não consegue sair da teoria para a prática (na maioria das vezes).

Jacob Boehme: um profeta incompreendido em sua época.
Apesar de sempre clamar por libertação, se Deus enviava a libertação logo a queixa era por não ter ficado tudo como antes. Foi assim com o povo que chorava por viver como escravo no Egito e quando Deus guia Moisés para os libertar logo começam a sentir saudades das panelas de carne do Egito.

Claro que muitas vezes o saudosismo e o apego ao que não serve mais vem disfarçado de várias formas: Moisés tentou arranjar desculpas para não falar, Jonas tentou arranjar desculpas para fugir, os judeus logo arranjaram a desculpa de Jesus esta endemoninhado, … Veja que algumas desculpas podem ter um fundamento real, sem serem mais do que desculpas como no caso de Moisés que de fato tinha um problema com a fala, outras são apenas mentiras como a dos judeus contra Jesus.

Existe uma charge famosa na qual um orador pergunta para uma platéia quem quer um mundo melhor e todos levantam as mãos, mas ao perguntar quem quer ser melhor para o mundo ninguém levanta a mão. A realidade é que mudar exige sempre uma mudança em nós mesmos, um processo de conversão e no fim das contas raramente estamos interessados nisso.


Os profetas, ou seja aqueles que aceitaram o chamado cristão para a profecia (e como o mover do Espírito não é algo limitado a uma casta ou grupo em específico), nos lembram disso e por isso são perseguidos e mortos como podemos ver nos textos de hoje.

A simples rejeição da profecia é sempre feita com discursos simplistas, o famoso argumentum ad hominem (quando se ataca ao defeitos e limites do argumentador ao invés de se questionar o argumento dele) é uma das formas mais comuns. E pasme, não faz sequer sentido para nós que somos cristãos e acreditamos no poder de Deus de usar quem ele quer, por pior que seja. Não, não...

“Não perseguimos o profeta, mas vamos rejeitar a profecia dizendo qualquer coisa que alivie nossas próprias consciências: não possui a mesma cultura, estudo, vivência, experiência, dom do que nós. Nem mesmo nos daremos conta do absurdo que é clamarmos por mudança se rejeitamos qualquer um que não esteja nos mesmos critérios e padrões que consideramos ideais”. Uma curiosa e bem discreta maneira de rejeitarmos a mudança é querermos que ela seja apenas uma mudança para como sempre foi feito e por quem sempre fez. “Talvez quando se tornar um de nós ou o que queremos possamos ouvir o que ele diz, afinal será só um eco de nossa voz e a única mudança real será no orador”.


Isso explica em partes o pensamento reacionário que infestou nosso mundo com a promessa de mudança contra mudanças, a única mudança prometida é a de voltar a fazer como sempre foi feito e com essa mudança na realidade estamos tentando impedir qualquer mudança.

Nossa sociedade é um cachorro correndo atrás do próprio rabo, ou talvez o famoso símbolo do ouroboros com a serpente que se engole, por isso a história humana se repete em ciclos (com as devidas mudanças no calendário, na tecnologia e etc). A profecia é necessária, mas nunca é desejada ou bem recebida e principalmente ela é inesperada: pode vir da boca da criança, do jumento, das pedras que clamam, pode vir de alguém detestável que Deus usou naquele momento, quase nunca vem de onde esperamos.


Ninguém esperava que o messias, da linhagem do Rei Davi, reinaria na cruz e não na liderança da revolta. Quem tiver ouvidos, ouça! Quem tiver olhos, leia! Graças a Deus que apesar da nossa resistência, Ele sempre levanta profetas indesejados e necessários. Pela sua misericórdia o seu povo aprende a necessidade de mudar e o quanto as escolhas ruins o afetam negativamente, aprende no amor (ao ouvir o que o Espírtio quer dizer para a Igreja) ou na dor (sofrendo pelos próprios erros), mas aprende. Cedo ou tarde, aprende.

Que o Espírito Santo amoleça nossos corações, abra nossos olhos e ouvidos para entendermos o que Deus pode estar falando para nós, especialmente por meio daqueles que menos achamos capacitados para tal. Em nome de Jesus. Amém.

Revdo. Morôni Azevedo de Vasconcellos (Igreja Episcopal Anglicana do Brasil) | 09/05/2020 (Ano A)
Jeremias 26:20-24 | Salmo 31:1-5, 15-16 | João 8:48-59