segunda-feira, 31 de julho de 2017

Resenha do livro: Reconsiderando o pietismo

O pietismo é um dos movimentos mais importantes do cristianismo moderno e contemporâneo, porém é igualmente incompreendido e muitos acreditam que os pietistas são fanáticos alienados. Os autores Roger Olson e Christian Collins Winn apresentam a gênese deste movimento que está completamente enraizado nas origens do rosacrucianismo.

O pietismo foi uma tentativa de romper com o formalismo que havia tomado conta do luteranismo, buscando um contato pessoal (místico) com Deus e ao mesmo tempo uma vida reta que refletisse em transformações das estruturas injustas da sociedade. Nas palavras de John Wesley, era importante a prática das obras de piedade e obras de misericórdia como consequência natural do novo nascimento.

Falando no rev. John Wesley, os autores do livro consideram (com toda a razão) o metodismo como a versão inglesa/anglicana do pietismo luterano/alemão. Isto é nítido pelos autores que influenciaram John Wesley e a sua ligação com o movimento pietista.
O livro pode ser comprado em: http://www.salcultural.com.br/pietismo.htm

O metodismo não foi o único fruto do metodismo fora da igreja luterana, o pietismo, através do Conde Zinzendorf, foi o responsável por reavivar/reformar a Igreja Morávia (a mesma igreja da qual o rosacruz Comenius havia sido bispo no passado).

Os pietistas, para a surpresa de muitos, beberam em fontes como as de Jacob Boehme, Paracelso, Arndt e outros. Partilharam de interesse pela alquimia e por estudos místicos em seus primórdios e compartilharam grandes nomes com o rosacrucianismo: Johannes Kelpius, George Rapp e tantos outros que fundaram comunidades místicas-religiosas.

Entender o pietismo é essencial para entender os primórdios do rosacrucianismo, sendo este livro junto com o livro "O iluminismo Rosa-Cruz" importantes para aqueles que desejam conhecer as fontes rosacruzes para além dos mitos fundadores das ordens neorosacrucianas.

Os autores não falam em rosacrucianismo em seu livro, porém qualquer entendido do tema poderá ver os nomes que citamos aqui sendo relacionados ao longo do livro e também logo reconheceram o que é falado sobre misticismo, alquimia e outras influências no pietismo.

Reviver o pietismo original será uma reconexão com o rosacrucianismo em suas raízes? Penso que sim e recomendo a todos os sinceros buscadores que tenham este livro em suas bibliotecas. Analisem por conta própria, pesquisem sobre o pietismo e sobre o contexto histórico do rosacrucianismo, então tirem suas próprias conclusões como sinceros buscadores e livres pensadores.

Na graça do Cristo, no amor do Pai e na comunhão do Espírito Santo,

sexta-feira, 28 de julho de 2017

Rev. William Law, Jacob Boehme e o Espírito de Oração

Este post é a adaptação de um trabalho apresentado por mim no núcleo Habemus Ad Dominum da British Martinist Order (Rio de Janeiro/RJ) em 02/07/2017.

O rev. William Law foi um clérigo anglicano que vive entre 1686 e 1761, é considerado por muitos um dos principais discípulos do místico luterano Jacob Boehme e o responsável por sua tradução/interpretação em língua inglesa. Law tinha uma carreira promissora, porém sua lealdade com a casa real dos Stuarts (antiga dinastia católica da Inglaterra) o impediu de prosseguir.
            Vale termos em mente os antecedentes de Law. O anglicanismo tenta se firmar como um meio-termo entre o catolicismo (especialmente o romano) e o protestantismo, abrangendo diversas correntes de pensamento que vão mais para um caminho ou mais para outro. Law como era um non-juror, leal a dinastia católica dos Stuarts, mas ao mesmo tempo era discípulo do luterano Boehme e ainda influenciou em alguma medida Louis Claude de Saint-Martin. Veja que temos duas tradições místicas muito fortes influenciando aí: o catolicismo medieval foi um fértil celeiro de místicos, o luteranismo por sua vez deu origem a várias tradições místicas (Lutero mesmo tendeu para o misticismo em vários momentos): rosacrucianismo (conforme podemos observar nos próprios manifestos), pietismo e a renovação do moravianismo (que não deixa de ser petista).
            Talvez o ponto crucial na teologia mística de Law seja conciliar a ortodoxia doutrinária com a mística cristã. Law preservou doutrinas como a da Depravação Total da Humanidade, Jesus Cristo como única via até o pai e a Salvação pela graça, através da Fé. Porém, tais doutrinas que possam constantemente ser um desafio a um cristianismo tolerante, que aceite e reconheça que pessoas que não se dizem cristãs possam ser salvas, porém o rev. William conciliou as duas coisas magistralmente sem qualquer artifício ardiloso, mas apenas com as escrituras e a iluminação divina.
            Assim como entender William Law pode ajudar a entender seu mestre Jacob Boehme, entender os rev. John Wesley e Charles Wesley pode nos ajudar a entender o pensamento de William Law.
            O metodismo, movimento protagonizado por discípulos de Law, tem uma teologia arminiana (portanto rejeitando o fatalismo/predestinacionismo calvinista) e suas ênfases principais (que estão presentes em Law) estavam na santificação, que (diferente de Law, Boehme e dos petistas) os metodistas tendiam a entender a santificação como plena enquanto Law/Boehme/Zinzendorf encaravam ela como um processo (nas palavras de Lutero, o cristão era Simul Justus et Pecattor), essa santificação ocorria pela ação do Espírito Santo em nós que deveríamos aceitar (melhor dizendo: Não impedir a ação de Deus em nós).
            Assim, Law acreditava que a pessoa era salva por aceitar Jesus e o Espírito Santo agindo em si, porém isso não necessitava de uma adesão consciente, já que se o ser humano é caído por natureza e todo o bem provém de Deus, quem pratica o bem está deixando Deus agir em si mesmo sem ter as melhores concepções doutrinárias sobre. Nas palavras de Law: "É por isso que, na maior verdade e na mais alta realidade, qualquer comoção da alma, qualquer inclinação do coração a Deus e à bondade, há de ser atribuída de maneira justa e necessária ao Espírito Santo ou à Graça de Deus."
            Tal como Boehme, Law reconhecia duas qualidades agindo em nós: A do Espírito Santo (céu interior) e a qualidade colérica (inferno interior, voz do tentador). Portanto, nascer novamente é deixar Deus agir em nós, essa é a santificação que devemos buscar e essa é a vida nova de que precisamos. Quando Nicodemus perguntou a Jesus se nascer novamente era voltar ao ventre da sua mãe, Jesus respondeu que era nascer da água e do Espírito. "Se o desejo de Deus desperta verdadeiramente na alma humana, a vida divina entra nele, e o novo nascimento de Cristo toma forma em quem nunca ouviu falar o nome dele".
            Ter em mente a necessidade do nascer novamente enquanto reforma total do nosso íntimo na busca da santificação, afasta de nós a controvérsia acerca da reencarnação. Já que ela se torna irrelevante dentro desse contexto, pois, evoluir não seria uma questão de nascer novamente em termos físicos infinitas vezes e sim que paremos de impedir a ação de Deus em nós e nesse caso a existência de apenas uma encarnação ou de milhares se torna um fator secundário/irrelevante. Mais uma vez, o entendimento de Law é essencial quando falamos de diálogos inter-religiosos e ecumenismo, já que nos afasta das controvérsias pouco relevantes e nos foca no essencial que está para muito além dos tomos de teologia e depende da religião do coração.
            Falando em religião do coração, outro aspecto importante a ser lembrado é que Law não era anti-intelectual, mas considerava que a razão não era suficiente para chegar até Deus: “Todo o bem e todo o mal vem dele; somente seu coração tem a chave da vida e da morte; faz tudo quanto quer. A razão mostrou ser um brinquedo impotente, ocioso, quando comparado com a força real do coração, que é o poder real, que tem todo o governo da vida em suas mãos”.
Na realidade, sua teologia nos mostra que não podemos chegar até Deus com nossos esforços (salvação pela graça), é Deus que vem até nós e tudo o que podemos fazer é tentar sentir a Sua atuação em nós. Nas palavras de Law, isso nos ajuda a evitar o farisaísmo que seria a mais alta linhagem do espírito do mundo e justamente por isso Cristo vai dizer que os publicanos e as prostitutas entrariam no Reino dos Céus antes dos escribas, fariseus e hipócritas que transformaram a piedade em negócio e acabam por servir a outro deus que não o Deus soberano:
"Buscamos nossa própria virtude, nossa própria piedade, nossa própria bondade, e, por isso, vivemos em nossa própria pobreza e debilidade: hoje satisfeitos e consolados com a aparente força e firmeza de nosso próprio temperamento piedoso, e imaginando que somos algo; amanhã caídos em nossa própria lama, ficamos abatidos e desanimados, porém não humilhados; queixamo-nos, porém é somente a dor da soberba, ao comprovar que nossa perfeição não era tal como a havíamos imaginado vã e vaidosamente. E assim haverá de ser, até que nossa mente haja mudado de tal modo que aceitemos nossa completa incapacidade para possuir qualquer bondade nossa, de ter vida própria.”
A soberba nos afasta de Deus e por isso que é dito que Deus rejeita o soberbo e dá a sua graça ao humilde. Ao nos enchermos de nós mesmos, nos sentirmos mais especiais que os outros, estamos impedindo que Deus atue em nós (acabamos de uma forma ou de outra considerando Deus “desnecessário” perante nossos méritos/virtudes/capacidades e santidade) enquanto que o humilde, ao reconhecer a sua própria impotência, acaba deixando Deus agir sem maiores problemas. Podemos pensar como se houvesse um técnico em nossa casa, o serviço fluirá bem se deixarmos ele trabalhar, mas tenderá a dar errado se ficarmos impedindo o seu trabalho para que nós (que nada sabemos ou sabemos muito pouco) imponhamos como e quando ele deve agir.
“Pois, já que nada é nem pode ser bom em nós, senão a vida divina manifestada em nós, como poderemos conseguir isto senão unicamente de Deus? Felizmente, uma vez que sejamos levados a esta convicção, teremos nos libertado da ideia de sermos nossos próprios construtores"
            Nesta religião do coração, a oração é essencial, porém a Oração para Law não se resume na recitação de preces, súplicas e rezas. Para Law, a oração é um Estado de Oração, é um entregar-se em Deus e esvaziar-se de si mesmo. Aliás, a única oração com valor seria aquela feita em Deus, guiada pelo Espírito Santo, pois a oração sem a atuação de Deus apresenta dois problemas: A) Seria apenas um belo discurso, ótimo para a retórica e pouco ou nada eficaz para a vida espiritual. B) Quando não oramos em Deus e para Deus, estamos orando para algum ídolo (ídolo aqui pode ser um sentimento, uma riqueza, uma ideologia política ou religiosa, qualquer coisa que coloquemos como a ênfase de nossa vida “Porque, onde estiver o teu tesouro, aí também estará o teu coração” cf. Mateus 6:21).
Rev. William Law

            A perseverança na oração é importante, porém temos que ter cuidado para não cairmos na repetição mecânica de fórmulas ou mesmo na simples oratória espontânea, a oração deve ser um ato transformador e por isso que o apóstolo Paulo nos manda “Orar sem cessar” (I Tessalonicenses 5:17). Se entendermos orar como uma atividade oral, além de excluirmos pessoas deficientes dela (o que dizer então dos animais, já que a Bíblia diz que todas as criaturas louvam ao Senhor?), seria impossível para nós orarmos sem cessar e as palavras do apóstolo seriam vão exagero. Porém, se entendermos a oração como um estado de espírito no qual nos entregamos a Deus (e aí as preces, meditações, repetições nos auxiliam a chegarmos nesse estágio) aí entenderemos que será possível orar sem cessar e a oração será deixar a porta do céu aberta em nós e derrubar o inferno interior.
            Em seu livro, O Espírito da Oração, Law deixa uma oração sua por escrito que vale a penas analisarmos para entendermos o seu pensamento:
Oh Pai Celestial, infinita e insondável profundidade de amor que não se esgota nem cessa jamais, salva-me de mim mesmo, dos movimentos e impulsos desordenados de minha natureza caída, corrompida desde tempos atrás, e faz que meus olhos vejam, que meu coração e meu espírito encontrem e sintam Tua salvação em Jesus Cristo.
Oh Deus, que me fizeste para Ti para mostrar Tua bondade em mim, humildemente Te suplico, manifestes dentro de mim o poder doador da vida de Tua sagrada natureza; ajuda-me a ter uma fé tão viva q verdadeira em ti, uma fome e uma sede do nascimento, a vida e o espírito do sagrado Jesus em minha alma tão forte, que tudo quanto há em mim se separe de qualquer pensamento interior ou ação exterior que não sejas Tu, Teu santo Jesus, e não suponha um funcionamento celestial em minha alma. Amém.
Law reconhece Deus com o mais profundo, infinito e incompreensível amor e seu principal pedido é de que Ele nos salve de nós mesmos. Esse é um ponto importante da teologia cristã, quem salva é Deus (através de Cristo) e nós mesmos é que somos aqueles que podemos nos derrubar. Mais do que qualquer ser externo, a nossa maior ameaça é interna. É o dragão que habita em nós, é o pecado que nos guia em nossos desejos e nos faz buscarmos apenas a nossa própria satisfação egoísta ao invés da vida amorosa de comunhão com Deus e com nosso próximo.
Os males de nossa sociedade são todos causados pela falta de regeneração humana e isso se dá justamente pelo interior das pessoas, por se entregarem em sua natureza caída com todos os seus impulsos e movimentos voltados para o desamor. Por isso mesmo, Law ora pedindo a Deus que o liberte de qualquer pensamento interior e ação exterior que não se relacionem com a vida celestial. Para tanto, é necessário que tenhamos a sede do novo nascimento para que a nossa natureza decaída seja substituída pela natureza divina de Cristo. Afinal, a nossa meta deve ser aquela das palavras de São Paulo: “Assim, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim” (Gálatas 2:20).
A questão da cura física não é um tema de grande importância no trabalho de Law, sua ênfase está na cura interior, porém podemos depreender de seus escritos uma postura diante das enfermidades e no aguardo da cura: a confiança em Deus. Se a oração é o esvaziamento em Deus, então podemos pensar no uso da oração para a cura como o se entregar completamente a Deus em termos de saúde ou doença. Entendo que isso nos faz deixar a cura nas mãos de Deus (evidentemente sem deixarmos de fazer a nossa parte), mas tentando não nos desesperarmos por isso e nos mantermos focados em Deus sem nos abalarmos em nosso objetivo por conta do revés da vida e tentarmos entender o motivo e o que podemos aprender daquela situação.
Além do mais, as tentações quando não surtem efeito se vão sozinhas, tal como o diabo desistiu de tentar Jesus no deserto ao ver que seria infrutífero e tal como Jó acabou tendo tudo reestabelecido em quantidade muito maior ao fim das provações. Por isso, temos que tentar ver também se o objetivo da doença não é nos desviar do caminho pelo desespero/aflição. Ao invés de nos perdermos nos momentos mais escuros da nossa vida, inclusive de doença e dor, devemos tentar transformar esses momentos em aproximação de Deus e eles nos farão bem ao invés de mal.


“E, portanto, a alma piedosa que só olha a Deus, que não pede nada além de ser só sua, não para de fazer seu progresso. Luz e escuridão igualmente a ajudam: na luz ela olha para Deus, na escuridão se apoia em Deus. E assim ambas lhe fazem o mesmo bem”.

Todas as citações foram retiradas do livro "O Espírito de Oração" de William Law:

http://salcultural.com.br/oracao.htm